Teoria, Prática e Transformação

Experiências de um Psicanalista

PSICANÁLISE

Danilo Amaral, para EPC

5/1/202519 min read

Este artigo aborda duas experiências vivenciadas pelo autor durante a presente formação como psicanalista. As experiências são apresentadas em duas dimensões: teórica e prática. A primeira constitui uma fonte de reflexão especulativa, filosófica e antropológica, em harmonia com a complexidade dos desafios enfrentados pela sociedade globalizada do primeiro quarto do século XXI. A segunda resulta da aplicação da autoanálise, fruto de mais de duas centenas e meia de aulas, além de inúmeras horas dedicadas a pesquisas, reflexões e aprofundamentos realizados ao longo do atual percurso de estudos. Por meio desta produção busca-se estimular uma reflexão sobre a psicanálise e sua prática, condição relevante na construção de uma sociedade mais justa e humana.

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“O melhor paciente de um terapeuta é o próprio terapeuta”.

Breve Contexto

Há muitas características que podem representar a psicanálise, sendo duas delas a magnanimidade e a liberdade. No contexto dos estudos, a primeira característica - uma das virtudes humanas, definida como alma grande - se refere bem ao ofício dos analistas, portanto, profissionais com almas grandes, generosas.


Sendo magnânima, a psicanálise aceita todos que desejam estudá-la e praticá-la, sem impor restrições intelectuais, profissionais e acadêmicas, abrindo, por isso, as portas para o autor desse artigo, que é um jornalista especializado em marketing de mercados e marketing político-eleitoral e, ainda, mestre em gestão de negócios, portanto, um profissional de mídia, de mercado e ainda professor. Para esse perfil, a psicanálise também se abriu generosamente.

Quanto à segunda característica da psicanálise, a liberdade, se aprende sobre ela que, embora haja métodos, práticas, conceitos e tópicas, descrições, nomenclaturas e definições, há uma liberdade na aplicação dela. Mas, não se engane o leitor: toda liberdade requer, no mesmo grau, uma carga de responsabilidade, afinal, o psicanalista trata de almas humanas.

Ao longo da jornada de estudos, ao refletir sobre a equação liberdade + psicanálise = almas e sobre como praticar a magnanimidade, característica essencial da psicanálise, o autor enfrentou momentos de angústia pessoal. Buscando orientação, levou seu sentimento a um sacerdote católico que, além de confessor, é também orientador espiritual e amigo. A resposta que recebeu foi simples, mas profundamente marcante: “pense que você estará atendendo almas”. Essa revelação, acolhida como uma verdadeira fonte de tranquilidade, passou a acompanhar o autor desde então. Na metafísica, isso se explica facilmente, pois, quando a inteligência encontra uma verdade, ela repousa e contempla. Foi o que se deu.

Longe de explicações complexas, a resposta do sacerdote às angústias do autor remete ao setting analítico. Esse encontro não deve ser reduzido a atender João ou Maria, um homem ou uma mulher, uma jovem ou um idoso, um pobre ou um rico, alguém de grande intelecto ou um ignorante. Diante do analista, o que se apresenta é uma alma que sofre. O que realmente importa é servir ao próximo, por amor, independentemente de quem ele seja, de onde venha ou de sua aparência. Afinal, a vida não se trata de nós mesmos, mas sempre do outro.

De forma semelhante, em carta endereçada a Jung, Freud lançou para posteridade um pensamento que justifica tudo isso: "A psicanálise é, em essência, uma cura pelo amor".


Alinhando as palavras do sacerdote, dadas ao autor, com as palavras de Freud, dadas a Jung, dá-se o primeiro passo sobre solo firme rumo à jornada da psicanálise.


Encontro marcado com o inconsciente

Ao longo dos anos, durante nosso crescimento e formação como indivíduos, somos moldados em nossos pensamentos, emoções e comportamentos pelo inconsciente. Contudo, essa formação carrega inúmeras deficiências, reflexo de uma sociedade igualmente falha - algo que, no contexto atual, dispensa maiores explicações. Nossa formação social ocorre, muitas vezes, sem a presença de virtudes fundamentais, como prudência (ou sabedoria), justiça, fortaleza (ou coragem) e temperança.

Sem essas virtudes, como já se sabia desde os pré-socráticos, séculos antes de Cristo, o ser humano desenvolve diversas incapacidades. Uma delas - central para o contexto deste artigo - é a dificuldade de enxergar a realidade como ela é, em vez de como gostaríamos que fosse, segundo nossos critérios e interesses pessoais. Essa incapacidade leva ao padecimento da alma e, consequentemente, ao sofrimento do homem.

Vejamos o exemplo de um jovem em início de carreira - o contexto da carreira é pertinente, pois reflete uma das áreas de formação e pesquisa do autor, atuando como professor e mentor de trajetórias profissionais. Imaginemos um jovem de 17 anos, finalizando o ensino médio, ingressando na faculdade e buscando seu primeiro estágio. Ele carrega, até esse momento, 17 anos de uma formação pessoal deficiente, moldada por uma produção desordenada do imaginário. Essa desordem resulta em pensamentos e emoções confusos, que, por sua vez, levam a comportamentos igualmente desordenados, culminando em sofrimento.

Podemos ainda ilustrar essa situação ao imaginar que esse jovem carrega, sobre seu verdadeiro "EU", 17 camadas de "detritos mentais" — uma para cada ano de vida — compostos por deficiências oriundas do ambiente em que foi inserido. Esses "detritos" incluem influências como ideologias, valores morais distorcidos, experiências familiares, ensino escolar inadequado, modismos, filosofias materialistas, hedonismo, cientificismo, entre outros. Essas camadas obscurecem o acesso ao seu terreno original, impedindo o autoconhecimento profundo.

O jovem da parábola encontra-se em uma realidade ainda mais perigosa, que podemos chamar de Condicionamento Agravante. Com o tempo, ele passa a acreditar e aceitar que "a vida é assim", conformando-se em caminhar sobre os detritos que lhe foram impostos. Nesse processo, esquece que, em algum momento, possuía um terreno próprio, pronto para ser arado e cultivado, chamado de seu verdadeiro EU. Esse esquecimento, por si só, é suficientemente poderoso para favorecer a formação de neuroses.

Jacques Lacan, autor que abordaremos em um próximo artigo, lança luz sobre essa dinâmica ao apresentar o conceito de Assujeitamento. Nele, o indivíduo assume para si algo que não lhe pertence, mas que é oriundo do Outro com seus campos do Imaginário, Simbólico ou Real. Assim, carrega a dor e o sofrimento desse Outro, que se manifestam em seu inconsciente e em sua subjetividade por meio de visões de mundo, crenças e outras heranças indesejáveis.

No Assujeitamento, tomamos como nosso aquilo que não é. O Outro, nesse caso, pode ser algo tangível (como pai ou mãe) ou intangível (como ideologias ou a sociedade). Em qualquer dessas formas, o resultado é o mesmo: o peso do Outro intensifica o sofrimento da alma do indivíduo. Por razões de espaço, o rico e profundo tema do Assujeitamento lacaniano, será explorado em detalhes em próximo trabalho.

Como podemos encontrar nosso terreno sob tantas camadas? Cavando. E o que se espera encontrar ao cavar? Talvez a infância, sedenta por ressignificação, entre outros aspectos fundamentais. No momento certo, responderemos a essa pergunta.

Mas onde iniciar essa escavação, tão característica do que podemos chamar de “arqueologia de si”? Um dos lugares mais propícios para essa extenuante busca pela terra original, ou pelo verdadeiro EU, é, sem dúvida, nas sessões de terapia. É ali que acontece o primeiro encontro com o inconsciente.

O autor aceitou esse chamado e tem trilhado essa jornada ao longo de sua formação psicanalítica, mergulhando no setting terapêutico pessoal como parte de sua própria escavação interior.

Cavar: Verbo Transitivo

Cavar, por ser verbo transitivo, é carente de algo. Tal complemento se dá com os estudos da psicanálise dirigidos à formação do autor, na Escola de Psicanálise de Curitiba (EPC), entre os anos de 2024 e 2025. Mediante o avançar das aulas, cavava-se cada vez mais no terreno do autor (alma) a partir de suas camadas de sedimentos de passado, para fazer jus à frase que abre esse artigo: “O melhor paciente de um terapeuta é o próprio terapeuta”.

Vale ressaltar que o objetivo desse trabalho não é apenas falar das experiências vividas numa autoanálise, propiciada pelos estudos da psicanálise, durante a formação do autor, mas, como foi acordado de início, o artigo deve tratar dos estudos da psicanálise freudiana, onde foram escolhidos apenas dois como pontos de diálogo e de aproximação deles com reflexões filosóficas e antropológicas, como exige a complexidade dos tempos atuais.

Isso tudo está ratificado, porém, tais empenhos não impedem que, nos momentos oportunos, se apresente, no decorrer do texto, etapas de profundas descobertas empreendidas pelo autor, em sua autoanalise, frente aos seus esforços e motivação em busca da formação psicanalítica. É a partir desse ponto que o leitor é convidado, como relatado na apresentação desse artigo, à reflexão do quanto é necessário aproximar a psicanálise de um olhar filosófico-antropológico que esteja em sintonia com a complexidade dos tempos atuais vividos pela sociedade desse primeiro quarto do Século XXI.


1º Ponto de Diálogo: Um Olhar sobre o Recalque e Suas Consequências

Recalque é a condição em que o desejo da pessoa foi lançado para longe, reprimido no seu inconsciente e, por isso, em determinadas situações de vida, tal desejo retorna como sofrimento, em sua psiquê (neurose) e/ou em seu corpo (histeria).

Em uma situação simples do cotidiano de uma criança, se ela reprime um desejo, como o de mentir, dizendo a si mesma “não posso mentir”, mas não compreende o motivo por trás dessa proibição, isso pode se tornar problemático. Se a única razão para não mentir for porque “é feio” ou “pega mal”, sem que ela entenda o impacto negativo da mentira, esse bloqueio pode, com o tempo, gerar uma neurose. Por isso, é fundamental que a mente da criança vá além do simples “não posso mentir” e avance para uma compreensão mais profunda, como: “não posso mentir, porque…”.

Na fábula de Pinóquio, seu nariz cresce toda vez que mente. Esse crescimento pode ser entendido como uma forma de histeria, ou somatização. Há uma pulsão constante no boneco de madeira para mentir sempre que enfrenta um problema. Quando ele cede a esse desejo (Id), seu nariz cresce - uma parte do corpo altamente visível - e o envergonha (Ego), apesar dos esforços do Grilo Falante (Superego) para refrear essa pulsão. O crescimento do nariz é a manifestação física do conflito interno entre o desejo de mentir e as consequências que ele enfrenta ao fazê-lo.

Assim, o problema não está no recalque que o inconsciente de Pinóquio liberou, manifestando-se como uma neurose. O verdadeiro problema é não conscientizar o boneco, deixando-o sem compreender por que não se deve mentir. O "paciente" Pinóquio precisa entender os prejuízos que a mentira causa, tanto para sua própria vida quanto para a vida dos outros. Trata-se de iluminar sua razão e trazê-lo à consciência.

E como esse movimento ocorre? Por meio da escuta do analista em relação ao paciente e, principalmente, quando o paciente começa a se escutar. Esse processo só acontece na análise, um espaço onde se integram a livre associação de ideias, a atenção flutuante e, a neutralidade e a abstenção do analista, tudo guiado pelo compromisso com a busca da verdade.

É muito comum ouvir das massas e dos leigos que a psicanálise conduz a uma derrubada dos limites (faz o que tu queres!) aos quais estamos todos submetidos. Isso só será verdade se deixarmos de dar o passo que ajudamos Pinóquio a dar: conscientizado sobre a saudável não realização de um desejo (mentir) - porque se escutou no setting - os sintomas diminuíram.

Não é apresentando ao paciente uma "solução" simplista, como: “liberte-se do seu recalque, entregue-se ao seu desejo e seja feliz!”, que se alcançará a verdadeira cura ou algo que seja compatível com ela. Essa fórmula, tão valorizada nos tempos hedonistas atuais, está longe de corresponder à busca pela felicidade. Conforme a definição consagrada pelo filósofo Agostinho de Hipona, felicidade é a posse habitual de um bem-querido, em uma reta ordem. Não é possível ser feliz alimentando maus hábitos, verdade que está diretamente relacionado à formação e ao desenvolvimento do indivíduo, conforme pode-se estudar em uma das aulas:

A psicanálise não vai estimular a pessoa a fazer o que está com vontade de fazer, algo que a sociedade não permite, por exemplo. A psicanálise vai proporcionar, no tratamento analítico, um espaço para ser possível ao paciente expressar seu desejo, e que ele possa olhar para aquilo, com o auxílio do psicanalista, para que o paciente possa entender a real motivação daquilo. Quando o paciente olha e entende a real motivação daquilo, aquilo passa a deixar de afetar o paciente. (TAVARES, Módulo 1, aula 19).

O fato é que, após identificar a causa da neurose, o paciente precisa, no processo de análise, alcançar as razões ontológicas universais. Deve reconhecer que há uma verdade inerente à natureza das coisas, inscrita em sua essência e na essência de tudo o que existe - aquilo que é permanente e central, em oposição ao que é transitório e acidental. Essa verdade essencial (uma realidade que a psicanálise busca incessantemente) permeia a vida humana, e não aceitá-la inevitavelmente levará ao sofrimento.

Embora esse raciocínio nos pareça autoevidente (axioma), vale ilustrar que há desejos que fogem da ordem natural e não podem ser satisfeitos, mas devem ser recalcados, podendo, do contrário, resultar em danos - às vezes irreversíveis - à pessoa. Mesmo desejando, não podemos, por exemplo, voar ao pular da janela de um prédio e nem atravessar uma parede de tijolos, ou ainda, numa situação menos fantasiosa, não podemos emagrecer sem passar pela reeducação alimentar (contrariedade de nossos apetites) ou ainda ganhar músculos levantando sempre a mesma quantidade de peso leve, na academia (condição que leva à dor). Recalcar tais desejos é, portanto, esperado. Repetimos: o problema não está em recalcar, mas sim no porquê se recalca, ou ainda, "quero, mas não posso... E, por que não posso?” Por isso a psicanálise se mantém num constante fluxo de questionamento com o paciente.

Ao se conscientizar da forma descrita, sob a luz da razão, consegue-se, com o auxílio da terapia, cortar o canal que alimenta a neurose. Reforçamos que há desejos que precisam ser reprimidos, e isso está absolutamente em ordem, pois tal repressão pode ser vista como um sacrifício que se faz para o bem de si e de outros, transformando esse sacrifício em algo sublime (a sublimação, como mecanismo de defesa, é tema para outro artigo).

Há uma verdade inerente às coisas, uma realidade que precisa ser reconhecida pelo paciente. Ir contra essa verdade - desejar o oposto, recalcar esse desejo e lançá-lo ao inconsciente - gera sofrimentos que persistem na forma de sintomas, sejam eles mentais ou físicos. Esses sintomas permanecerão até que a análise os traga à consciência e o paciente os aceite (e os vivencie), permitindo assim a sua superação.

Por isso, proibir por proibir, sem uma reflexão sobre a razão da proibição e o consequente recalque, é apenas censurar, castrar, bloquear e reprimir o indivíduo. O homem possui uma alma que não é apenas sensitiva, como a dos animais - que podem ser condicionados a obedecer proibições por meio de comandos e controle, sem envolver recalque. A alma humana é também intelectiva, e necessita compreender as razões da verdade. O intelecto do paciente é programado para buscar essa verdade, e enquanto não a encontra, não descansa. Somente ao alcançá-la é possível reduzir os sintomas e aliviar suas dores.

O setting analítico é o espaço onde esse encontro com a verdade pode acontecer, proporcionando ao paciente a possibilidade de compreender, aceitar e viver essa realidade essencial.

2º Ponto de Diálogo: Autoanálise, Mecanismo de Defesa e seu Ordenamento Possível

Na psicanálise, o analisando embarca em uma jornada que vai além do simples autoconhecimento. As análises não apenas conduzem à conscientização de si, mas de um si que transcende o Ego. O Ego, afinal, reflete não apenas os próprios desejos do indivíduo, mas também os desejos do Outro. A psicanálise, porém, busca uma realidade mais profunda, revelando, ao longo da jornada, o verdadeiro Eu, aquele que esteve soterrado por anos de desejos e dores introjetados pela influência do Outro: pais, familiares, sociedade, escola, mercado de consumo e ideologias.

A cada ano de vida, camadas e mais camadas foram se sobrepondo, como toneladas de elementos provenientes do imaginário e do simbólico desse Outro. O Eu, diante de tal peso, tentou, silenciosamente, resistir e sobreviver até encontrar a possibilidade de se libertar - uma libertação que ocorre pela palavra que leva à conscientização. Essa liberdade, no caso do autor, tem sido conquistada por meio do processo de autoanálise.

A autoanálise, recurso também utilizado por Freud, é uma característica de quem se dedica ao estudo e à prática da psicanálise. É um instrumento que permite ao sujeito atravessar as camadas impostas pela vida e reconectar-se com seu terreno original, descobrindo seu verdadeiro Eu.

Uma das personagens mais presentes e frequentemente identificadas nas sessões de análise são as defesas que o paciente utiliza para escapar das investidas do analista, especialmente quando este se aproxima demais do inconsciente. Os Mecanismos de Defesa (MD) são ações inconscientes do Ego, acionadas para evitar conteúdos indesejados, incômodos ou dolorosos que possam emergir para o consciente durante uma sessão.

Mesmo quem se dedica à autoanálise não está isento da influência desses mecanismos, sendo essencial reconhecê-los e considerá-los no processo. Por essa razão, desde os primórdios da psicanálise, Freud destacou a importância de o psicanalista também se submeter à análise com outro profissional, de modo a minimizar suas próprias resistências.

Os mecanismos de defesa, ou processos defensivos, como apresentados por Freud (1937), “falsificam a percepção interna do sujeito, fornecendo apenas uma representação imperfeita e deformada”. A meta não é eliminá-los, pois eles desempenham um papel importante na proteção da psiquê, mas sim ordená-los e controlá-los, garantindo que suas manifestações não bloqueiem o acesso às causas do sofrimento psíquico.

Para ilustrar o que aqui se expõe, apresentaremos a seguir um processo real que exemplifica a identificação de um desses mecanismos de defesa, os prejuízos que ele causou ao longo de anos na psique (ou alma) do autor e, por fim, o ordenamento do referido mecanismo. Esse ordenamento permitiu que o mecanismo encontrasse seu devido lugar no quotidiano da alma, contribuindo para um funcionamento mais equilibrado e saudável. Trata-se do mecanismo de defesa chamado de Racionalização, assim definido:

  • Explicação do real motivo para substituir determinada dor

  • É uma mentira inconsciente que se põe no lugar daquilo que se reprimiu

  • Evita relatar o afeto, optando por explicá-lo, dando voltas, repetindo-se

  • Apresenta uma explicação aceitável moralmente

  • Indivíduo não percebe as reais motivações

  • Delira, justifica, explica


Trata-se portando de uma camuflagem gerada pelo inconsciente para esconder um sentimento, pensamento, ideia ou desejo controverso que incomoda. Argumenta-se consigo mesmo numa espécie de falácia e, como tal, seduz ao engano pelo conteúdo e contexto criados, novamente, pelo inconsciente do paciente. Uma operação defensiva do Ego para proteger-se do desprazer psíquico.

Antes de apresentarmos os resultados da autoanálise relacionados ao mecanismo de defesa da Racionalização, é necessário esclarecer que o texto a seguir foi extraído das anotações pessoais do autor durante seu processo de autoanálise. Nesse período, o autor se deparou com diversas percepções sobre si, que, por sua vez, desencadearam novas reflexões e autoanálises, em um ciclo contínuo que se estendeu por dias e se mantém até o momento, enquanto este artigo é escrito.

Esses registros não têm a pretensão de oferecer uma espécie de “manual”, o que seria totalmente incompatível com o propósito da psicanálise. Afinal, esta se caracteriza como um método singular de investigação, destinado a acessar o inconsciente de forma personalizada, considerando a realidade subjetiva e única de cada indivíduo.

As anotações que seguem foram elaboradas com o intuito de compartilhar, de maneira acessível, alguns momentos de acesso ao inconsciente – e a um mecanismo de defesa específico – vivenciado pelo autor por meio da autoanálise. É importante ressaltar que tal jornada só foi possível devido à formação e ao estudo da psicanálise.

Este relato busca ilustrar como o enfrentamento da Racionalização resultou em uma significativa redução – quase total eliminação – das dores e incômodos que, por anos, comprometeram a vida do autor enquanto sua psiquê (alma) permanecia refém desse mecanismo de defesa.

A Autoanálise e Seus Efeitos no Ordenamento da Racionalização

A autoanálise foi fonte inicial da conscientização da existência, no inconsciente, de tal mecanismo de defesa e como ele se manifesta. Lembramos que não se trata da eliminação, mas do ordenamento desse MD na psiquê. A Racionalização não é bem-vinda para validar cada pensamento ou palavra, cada comportamento, atividade ou escolha de uma pessoa que envolve a vida familiar, profissional e social. Quando assim se apresenta, a Racionalização torna insuportável a vida psíquica do indivíduo, gerando, por exemplo, sentimento de culpa e ansiedade, segundo o modus operandi desse MD como já foi apresentando na definição dele, em página anterior.

Passado pelas etapas da conscientização da Racionalização, como opera e influencia a vida psíquica de uma pessoa, o autor formulou mudanças na forma de gerenciar seus pensamentos, visando ordenar o mecanismo de defesa:

  1. Diante da realidade pessoal e profissional do autor, foi experimentado um método de organização das ações distribuídas por semanas, denominadas de forma simbólica. Na chamada "Semana Santa Marta", as ações práticas são realizadas, como, por exemplo, escrever um artigo, já que as decisões, por meio do raciocínio - não da racionalização - haviam sido previamente amadurecidas na semana anterior, a "Semana Santa Maria". Esse ordenamento de funções - ou seja, uma semana dedicada ao pensar e outra ao executar - revelou-se uma estratégia eficaz para silenciar a voz da Racionalização.

  2. Durante a Semana Santa Marta, a pessoa se desprende da Racionalização - pois a mente não comporta dois pensamentos ao mesmo tempo - e foca exclusivamente na aplicação das ideias já desenvolvidas. Dessa forma, a Racionalização perde espaço e poder de atuação, pois não recebe atenção desnecessária. O que se constatou é que, ao dividir de maneira clara os períodos de reflexão e ação, a mente encontrou mais equilíbrio e clareza, permitindo que as decisões fossem efetivamente colocadas em prática.

  3. Outra observação é que, o constante ato de Racionalizar, sem limites ou ordenamento, leva à inação não apenas da mente, que se torna confusa e sobrecarregada, mas também do corpo, que pode somatizar o excesso de pensamentos e gerar sintomas físicos e emocionais, como as tensões musculares. Esse processo acaba por alimentar alguns dos chamados vícios da alma, como a acídia (desgosto pela ação ou pela vida), a tibieza (falta de entusiasmo ou vigor) e a pusilanimidade (falta de coragem de agir, mesquinhez). Assim, a pessoa não age ou age de forma insuficiente, deixando de cumprir suas obrigações quotidianas ou realizando-as sem diligência, com dispersão e falta de propósito.

  4. A Racionalização, quando ordenada, elimina ou, ao menos, reduz significativamente, diversas neuroses, ao controlar o excesso de pensamentos desordenados. O autor constatou que esse ordenamento trouxe maior controle sobre sintomas como a ansiedade (antecipação constante do futuro), baixa autoestima e pensamentos de autossabotagem. Além disso, houve uma redução considerável de síndromes como a do impostor e o vitimismo, bem como da angústia decorrente de uma percepção equivocada da perda de tempo ao se dedicar a algo.

  5. Esse alinhamento mental, ao colocar limites claros para a Racionalização, permitiu que o autor direcionasse sua energia física e mental de maneira mais consciente e produtiva, evitando o desgaste emocional gerado pelo pensamento excessivo e descontrolado. Assim, o ordenamento não apenas promoveu maior clareza e equilíbrio interno, mas também potencializou a ação concreta, reduzindo significativamente o sofrimento psicológico associado à desorganização dos processos mentais.

  6. Conscientizar-se sobre a Racionalização ajuda a estancar a perda de energia mental e física, combatendo estados como a acídia e a tibieza, já apresentadas. O excessivo hábito de racionalizar constantemente drena energia vital, já que, como se sabe, cerca de metade do gasto energético do corpo é destinado ao cérebro. Esse desgaste comprometia o entusiasmo e a disposição para atividades como trabalho, estudo, sexo, exercícios físicos e outras práticas importantes para uma vida equilibrada e saudável.

  7. Manter o mecanismo de defesa sob controle proporciona outro importante ganho: trazer a mente para o tempo presente, evitando a tentação de se fixar no passado (memória) ou se projetar no futuro (imaginação). Segundo a filosofia clássica, é fundamental o ordenamento dessas faculdades da alma, memória e imaginação. C. S. Lewis, escritor inglês, ensina que é somente no presente que tocamos o eterno. Ele também afirma que o demônio nos distrai, levando-nos a pensar no passado ou no futuro, afastando-nos do presente, onde podemos encontrar o Eterno, ou seja, Deus. Essas reflexões são extremamente práticas na tomada de decisão, pois o passado não existe mais e o futuro ainda não existe. Ambas as condições são inacessíveis para nós, para os outros e para o mundo. Apenas o presente nos pertence, sendo o único espaço onde podemos viver e amar de forma concreta.


Na continuidade da autoanálise e do estudo sobre a Racionalização, observou-se ainda:

  • Com o passar de alguns meses, não foi mais necessário dividir as ações da vida em "semana para raciocínio" (Santa Maria) e "semana para execução" (Santa Marta), pois esse processo passou a ocorrer de forma natural no dia a dia, mantendo o mecanismo de defesa sob controle.

  • Também foi identificada a influência da Racionalização na comunicação. Quando ordenada, percebeu-se uma melhora significativa na comunicação oral. Ao reduzir a Racionalização durante a fala, esta se tornou mais simples e fluida, facilitando a compreensão do ouvinte. Isso ocorreu porque foi eliminada a constante busca por palavras eloquentes, complexas ou utilizadas visando impressionar o interlocutor.

Essa descoberta revelou outro aspecto importante: o narcisismo, fonte de vaidade e soberba, vícios da alma presentes em maior ou menor grau em todas as pessoas. O narcisismo, que é uma etapa da condição humana, ligada ao Complexo de Édipo, tão relevante para a psicanálise, será explorado em um trabalho futuro.

Considerações

Seguindo observações empíricas, é importante dizer que há razões mais do que suficientes para acreditarmos numa musculatura psíquica deficiente nas pessoas de nosso tempo. Pessoas julgam (interpretam), a todo momento, as situações em que estão envolvidas. Isso acontece com as coisas banais do quotidiano e com as coisas mais traumatizantes da vida. Mas, julgam mal.

Se esse julgamento for mal feito, por falta de subsídios para fazê-lo bem feito, por más influências externas (educação, família, sociedade, religião, ideologias, etc.), o resultado será de sintomas como ansiedade, síndromes variadas, transtornos, além de fobias e casos mais graves como depressão ou ainda, psicoses (alucinações,) e esquizofrenias (alucinações com depressão).

Segundo observações feitas a partir das demandas sociais, é certo que as pessoas estão longe de terem subsídios e de estarem imunes às influências externas maléficas. É certo, portanto, que as pessoas não sabem julgar o que acontecem a si, aos outros e à realidade, por isso, sofrem, porque julgam mal, jogando sobre si, cargas desproporcionais de emoções, inclusive aquelas que apreendem/recebem do Outro.

Como julgar bem?

Tendo acesso ao máximo de dados e informações, para treinar a virtude da Justiça, que é, na definição clássica, dar ao outro o que lhe é devido.

Podemos, então, pensar assim: dar ao caso que estamos vivendo (problema, desejo, dor, desafio, ou qualquer coisa relacionada à pessoa) o valor, peso, importância, esforço, sacrifício, investimento, que lhe é devido. Nem mais, nem menos. Assim, estaremos em adequação (sintonia) com a realidade e com a natureza dessa coisa. Estaremos, na verdade.

Podemos resumir o que foi dito em apenas três movimentos da alma:

  1. Pessoas julgam mal a si, ao outro e à realidade que a cerca, portanto,

  2. Não sabem como calibrar o peso daquilo que vivenciam, portanto,

  3. Por não saberem viver as realidades da vida - lutando contra a verdade das coisas - geram, muitas vezes, um peso descomunal de culpas, medos, angústias que nem se quer são seus, mas do Outro. Não percebem em seu Eu, o assujeitamento do inconsciente.


Assim, acabamos julgando mal a nós mesmos, nosso imaginário, nosso simbólico e, consequentemente, nosso real. Seguir pela jornada psicanalítica é trazer o inconsciente para a luz da consciência (acessar dados e informações sobre si), por mais assustador que isso possa parecer. Embora exista um limite nos efeitos da autoanálise - sem a desmerecer de forma alguma - o autor tem se deparado com o indesejável, o sensível, o doloroso, mas necessário acesso ao inconsciente.

O fato é que as reflexões propostas neste artigo se manifestaram de forma concreta na vida do autor. São inúmeras as situações vividas até aqui, no processo de formação como psicanalista, e duas delas estão diretamente ligadas a uma das máximas mais repetidas pelo formador da escola: "Quem não fala, sofre, e, ao falar, o sintoma diminui."

E é exatamente assim que acontece.



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